APA: a experiência que interpela e apodera, transforma
Não sabemos nada de um corpo enquanto não sabemos o que pode ele, isto é, quais são os seus afetos, como eles podem ou não compor-se com outros afetos, com os afetos de um outro corpo, seja para destruí-lo ou para ser destruído por ele, seja para trocar com esse outro corpo ações e paixões, seja para compor com ele um corpo mais potente,
Gilles Deleuze, in Mil Platôs
Corpos. Dezoito corpos no espaço de madeira, vestidos de preto. Vozes que se dilatam e pertencem ao todo, um coletivo sensível que abre um portal onde tudo é possível. O imaginário é, existe. Avançar por camadas que multiplicam visões, alargam olhares, estreitam o feminino.Textos escolhidos pedem voz. A exploração se inicia. Dança dos ventos. Pássaros que voam não se batem. Buscar o simples para encontrar o extraordinário.
Stéphane Brodt e Carlos Simioni constroem com as atrizes do APA um caminho de pesquisa ressonante do essencial - o presentificado no fazer. Capturar o agora, poeticamente, sem mostrar o fazer. O sentido do treinamento muda, se transforma através do coletivo. Limites são o trampolim para saltos sobre si mesmo. O paradoxo é fazer desaparecer mente/corpo, pensamento/ação e, assim, permitir que o jogo aconteça.
O corpo está e não necessita que pensemos nele para que exista. A ação se faz não é preciso mostrá-la. A técnica alheia-se ao mecânico, ao artificial no processo que é vivo e por isso, pulsa. Habitar a cena. Habitar-se ator.
Fazer uma experiência com algo significa que algo nos acontece, nos alcança; que se apodera de nós, que nos tomba e nos transforma. Quando falamos em "fazer" uma experiência, isso não significa precisamente que nós a façamos acontecer, "fazer" significa aqui: sofrer, padecer, tomar o que nos alcança receptivamente, aceitar à medida que nos submetemos a algo. Fazer uma experiência quer dizer, portanto, deixar-nos abordar em nós próprios pelo que nos interpela, entrando e submetendo-nos a isso. Podemos ser assim transformados por tais experiências, de um dia para o outro ou no transcurso do tempo.
Heidegger, apud Renato Ferracini, in Ensaios de atuação.
Stéphane Brodt e Carlos Simioni
"Venham
espíritos que velam pelos pensamentos mais criminosos ! Privem-me da delicadeza
do meu sexo e alimentem todo o meu ser com a mais deslavada crueldade!
Engrossem o meu sangue e extraiam todo o remorso que há em mim para que a minha
consciência não crie obstáculos e me supliquem para desistir de meus planos
sórdidos. Venham ministros da morte onde quer que estejam aguardando os piores
atos! Venham até meus seios maternais e azedem meu leite! Venha logo noite!
Vista-me com a mais negra fumaça do inferno para que meu punhal afiado não veja a
ferida que irá fazer! E nem o céu espiando pelas frestas da escuridão possa
gritar: pare! Pare! "
Lady Macbeth, William Shakespeare
"Isso me dói até
na ponta das veias. Olho para cada um deles e só vejo a mão com que mataram o
que era meu. Está me vendo assim? Não pareço louca? Louca, sim, por não ter
gritado tudo o que meu peito precisa. Trago no peito um grito sempre de pé, que
tenho de castigar e esconder entre os mantos. Mas levam os meus mortos, e tenho
que calar (...) Demora muito. Por isso é que é tão terrível ver o sangue da
gente derramado pelo chão. Uma fonte que corre um minuto, e que para nós custou
anos e anos. Quando cheguei para ver meu filho, estava caído no meio da rua.
Molhei minhas mãos no sangue e as lambi, com esta língua. Porque era sangue
meu. Você não sabe o que é isso. Se eu pudesse, guardava a terra encharcada
pelo sangue numa jarra de cristal e de topázios".
Mãe, Bodas de Sangue, Garcia Lorca
"Vergonha para ti, vergonha, ó tu, massa informe de sórdida disformidade, pois que é tua presença que aqui faz verter o sangue das veias geladas e vazias onde o sangue já não tem morada! O teu feito inumano e contrário à natureza provoca este dilúvio contrário a toda a natureza. Oh, Deus! Tu que criaste este sangue, vinga a sua morte.Oh, terra! Tu que bebes este sangue, vinga a sua morte.Ou que os relâmpagos dos céus se abatam sobre o assassino, ou que a terra se abra e de súbito o devore., tal como tu, ó terra, sorves todo o sangue deste bondoso Rei que seu braço comandado pelo inferno tão cruelmente matou."
Lady Ana, Ricardo III, William Shakespeare
"Quero
pedir-te perdão por tudo o que disse. As provas de afeição que tantas vezes te
dei sejam o penhor do teu perdão de agora. Muito sofri para chegar aos caminhos
da humildade. Ponderei tuas razões, percebi minha imprudência, a vaidade do meu
rancor e renunciei à minha cólera. Agora vejo claro, e sei que tens razão! Fui
uma insensata. A natureza das mulheres é cheia de fraquezas. Perdoa as minhas e
me ajuda. Tomei novas resoluções e preciso de ti para poder realizá-las.
Crianças! Crianças! Venham logo. Venham beijar o teu pai e homenageá-lo comigo.
Fez-se a luz entre nós. Minha cólera está morta. Chegou
o tempo do perdão. Aprendi novamente a alegria de chorar."
o pesquisador Camilo Scandorala
Carlos Simioni e Stéphane Brodt
"Inutilmente, não; se porque inutilmente
se trazes a confirmação da morte dele? Sim, ele nasceu de minha própria alma e
se afastou de mim, da sua mãe que o concebeu e se refugiou em terras
estrangeiras! Depois de desterrar-me, nunca mais o vi; apenas ocupava-se de
incriminar-me e de acenar-me com seguidas ameaças, tantas e tais que nem de
noite nem de dia pousava em minhas pálpebras o suave sono; aniquilavam-me
temores incessantes. Mas a partir de agora sinto-me
liberta do medo dele e da sua perniciosa irmã que suga o sangue mesmo da minha
existência; enfim irei viver em paz, apesar dela!"
Electra, Sófocles
Texto maravilhoso apresentando um trabalho inédito de grandes realizações. Parabéns, Maira! Orgulho de fazer parte dessa experiência única!
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